Na história de nossa sociedade, observamos que, com a diminuição das horas de trabalho e com a crescente preocupação com a melhoria da qualidade da vida urbana, o lazer é valorizado e para ele, dirige-se o interesse dos estudiosos de assuntos sociais. São pesquisadas e analisadas suas contribuições na vida dos indivíduos, diante da riqueza de possibilidades que ele oferece.
É preciso ressaltar que os estudos da área associam a origem etimológica da palavra lazer ao termo latino licere, que significa lícito, permitido.
PARA LER
Sobre a origem e a pronúncia da palavra licere é esclarecedor o artigo do Pe. Ricardo Dias Neto, intitulado “Lissére…Licthére…Likére: afinal, o que é lícito?, publicado na Revista Licere. v. 2, n.1, 1999. p.11-15.
Segundo Dumazedier (1979), a sociologia do lazer foi fundada nos Estados Unidos, mas foi nas décadas de 20 e 30 que os primeiros estudos da sociologia empírica do lazer surgem nos Estados Unidos e na França, buscando relacionar os fenômenos do lazer aos outros campos da realidade social. No entanto, foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial que a sociologia do lazer e uma série de pesquisas sobre o assunto se proliferaram por outros países e passaram a se relacionar de modo mais frequente com outras áreas sociais, tais como: política, urbanismo, planejamento econômico, saúde e assistência social.
Vários autores (REQUIXA, 1977; MARCELLINO, 1996; BRAMANTE, 1998) afirmam ser a obra de Ferreira (1959), “Lazer operário: um estudo da organização social das cidades”, um marco inicial da preocupação com essas questões em nosso país. O autor realizou uma pesquisa com trabalhadores assalariados da cidade de Salvador (BA), destacando a importância e os benefícios das atividades de lazer para a vida das pessoas, mas difunde uma perspectiva de lazer compensatória.
No estudo realizado por Ferreira (1959), percebe-se novamente a ideia de que lazer é um tempo, e de que a recreação está relacionada às atividades nele desenvolvidas. A recreação representava a possibilidade de organização racional do lazer, sendo capaz de auxiliar na manutenção do equilíbrio da sociedade diante dos grandes problemas apresentados pelas mudanças decorrentes da industrialização e do crescimento desordenado das cidades.
Em 1969, o lazer passa a ser tratado de forma institucional, com a realização de um seminário que visava à análise crítica sobre a situação do lazer no Brasil. O “Seminário de 1969” foi realizado, em São Paulo, pela Secretaria do Bem-Estar Social da Prefeitura de São Paulo e pelo Serviço Social do Comércio (Sesc/São Paulo). Na oportunidade, vários temas debatidos apresentaram diversidade de enfoques possíveis para a questão do lazer.
Para Requixa (1977), esse seminário representou um avanço e um alerta para as discussões sobre o lazer em nossa sociedade. Como principais resultados desse evento, o autor destacou as seguintes questões: a identificação de um grande número de pessoas (profissionais ou voluntários) que atuavam no campo do lazer; a possibilidade de conhecer a produção teórica da área e a consequente troca de experiências; a ampliação da concepção de lazer, extrapolando a faixa etária infantil; o despertar do interesse de outras regiões do Brasil em organizar seminários sobre o tema.
Demonstrando a importante contribuição da cidade de Porto Alegre (RS) para os campos de recreação e lazer, em setembro de 1973 foi criado o Centro de Estudos de Lazer e Recreação – CELAR, promoção conjunta da Pontifícia Universidade Católica e da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (REQUIXA, 1977). O CELAR tinha como objetivo principal auxiliar na educação para o lazer, por meio da conscientização em novas dimensões, impostas pelo mundo contemporâneo. Difundindo uma visão de recreação e de lazer presentes na época, o centro procurava formar uma mentalidade consciente sobre a importância do lazer e da formação de profissionais para programar e coordenar as atividades específicas de lazer, visando à saúde física e mental das comunidades. Apesar do pequeno tempo de existência (de 1973 a 1978), o CELAR teve grande contribuição na difusão dos conhecimentos, em âmbito nacional e internacional, sobre o lazer no Brasil.
No contexto brasileiro, cabe destacar também as contribuições de duas instituições para a disseminação de propostas de “recreação e lazer”: o Sesc (Serviço Social do Comércio) e o Sesi (Serviço Social da Indústria), pertencentes, respectivamente, aos segmentos do comércio e da indústria. Essas entidades tinham como preocupação central a ação social e educacional por meio de vários projetos, dentre os quais os de lazer e recreação, referenciados por documentos internos de normas e diretrizes de ação.
Apesar da expressiva contribuição dessas instituições, os objetivos traçados vislumbravam o exercício da participação comunitária. No entanto, ao efetuar análises sobre os projetos e as ações desenvolvidos pelo Sesc e pelo Sesi, observamos que esse tipo de participação se resumia ao oferecimento de atividades de lazer como bens residuais, a partir da hegemonia de determinados grupos sociais. Não havia preocupação com a participação mais efetiva no processo de distribuição de renda e de bens sociais, como se não existissem, também, diferenças de classes sociais, raças, etnias, credos, gêneros.
Com a vinda ao Brasil do sociólogo francês Joffre Dumazedier, em iniciativas do Serviço Social do Comércio (Sesc/SP) e do CELAR (Porto Alegre/RS), no final da década de 70, houve impulso para o desenvolvimento da sociologia do lazer no País. Nesse período, várias obras desse autor foram traduzidas: “Questionamento teórico do lazer”, em 1975; “Lazer e cultura popular”, em 1973; “Sociologia empírica do lazer”, em 1979; “Valores e conteúdos culturais do lazer”, em 1980, dentre outras. Essa época foi marcada pelo estímulo a intercâmbios de ideias e pesquisas empíricas sobre o lazer, concretizado em inúmeros encontros e cursos, organizados principalmente pelos técnicos que atuavam no Sesc/São Paulo. É importante ressaltar que, ainda hoje, o trabalho de Dumazedier tem exercido grande influência no desenvolvimento dos campos de estudos sobre o lazer em nosso país.
De acordo com SANT’ANNA (1994), essa produção sobre o lazer dos anos 70 auxiliou no desenvolvimento de novos instrumentos, mais precisos e diversificados, de descrição, avaliação, cálculo e organização dos “usos do tempo livre”, e é nela que se evidenciam esforços mais amplos para transformar o nosso meio sociocultural. Emergem livros, artigos científicos, dissertação e teses, bem como se avolumam relatórios de observações das técnicas empregadas e dos resultados obtidos na aplicação dos programas de lazer, que, inicialmente, podem parecer um saber homogêneo isento de contradições, mas que, no fundo, perpetuavam uma série de problemas e de desigualdades sociais. O conceito de lazer amplamente difundido foi o proposto por Dumazedier (1979, p.12); apesar de sua importância para a área, apresenta uma série de questões que necessitavam ser repensadas. O autor nos fala que:
“…o lazer é o conjunto de ocupações, às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se e entreter-se ou ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar- -se das obrigações profissionais, familiares e sociais.”
Dumazedier (1979) ainda apresenta um grupo de características que são fundamentais para caracterização do lazer:
1) Caráter libertário – o lazer é compreendido como a liberação das obrigações profissionais, familiares, socioespirituais e sociopolíticas, resultando de uma livre escolha do sujeito;
2) Caráter desinteressado – o lazer não precisa estar vinculado a algum fim especifico, seja de ordem profissional, utilitário, lucrativo, material, social, político;
3) Caráter hedonístico – a vivência do lazer é marcada pela busca do prazer e por isso o hedonismo representa o seu motivo principal;
4) Caráter pessoal – as funções de descanso, divertimento e desenvolvimento pessoal e social do lazer respondem às necessidades do indivíduo perante a gama de rígidas obrigações impostas pela sociedade.
Ainda entre os autores pioneiros na produção teórica do lazer, podemos citar Ethel Bauzer Medeiros e Renato Requixa. Medeiros (1980, p. 3) define o lazer como “espaço de tempo não comprometido, do qual podemos dispor livremente, porque já cumprimos nossas obrigações de trabalho e de vida”. Já Requixa (1980, p.35) define o lazer como “Ocupação não obrigatória, de livre escolha do indivíduo que a vive, e cujos valores propiciam condições de recuperação psicossomática e de desenvolvimento pessoal e social”.
Essa definição concebe o lazer como tempo liberado das obrigações, constituindo-se no tempo residual de nossas vidas. Assim, podíamos chamá-lo de “tempo livre”. Marcellino (1987, p.29), afirma que o tempo não é “livre”, ou seja, “tempo algum pode ser considerado livre de coações ou normas de conduta social.” Esse autor propõe, então, o termo tempo disponível, porque é difícil pensar as vivências do ser humano desconectadas das influências de sua vida em sociedade.
A partir da década de 80, surgiram no cenário nacional autores que possibilitaram novo olhar sobre as questões do lazer. Alguns deles participaram do grupo constituído pelo Sesc e seus trabalhos tiveram influência direta de Dumazedier (1979). Dentre os estudiosos, destaca-se a contribuição dos trabalhos de Marcellino (1983;1987;1990) para o avanço nas discussões do lazer a partir de uma abordagem crítica, fundamentando um grande número de trabalhos que vêm sendo realizados na atualidade. O autor tem auxiliado sobremaneira na construção do campo de estudos do lazer no Brasil, destacando-se, dentre a sua obra, como as mais relevantes: “Lazer e humanização”, de 1983; “Lazer e educação”, de 1987; “Pedagogia da animação”, de 1990; “Lazer: formação e atuação profissional”, de 1995, e “Estudos do lazer: uma introdução”, de 1996.
Na obra de MARCELLINO (1987), ressaltamos a crítica da visão funcionalista do lazer, que esteve presente em muitos textos publicados em nosso país. Essa perspectiva aponta o lazer como algo altamente conservador, que busca a “paz social” e a manutenção da “ordem”, destacando-o também como instrumento para suportar a disciplina e as imposições de nossa vida em sociedade.
PARA LER
Marcellino (1987) apresenta quatro vertentes diferentes da visão funcionalista de lazer: romântica, moralista, compensatória ou utilitarista. Essa classificação é feita somente para fins de análise, pois elas não se encontram isoladamente, e sim interligadas no pensamento dos vários teóricos.
Repensando esse tema numa visão crítica, MARCELLINO (1987) situa o lazer como esfera da vida gerada historicamente, da qual emergem valores questionadores da sociedade como um todo, e que também pode exercer influências na estrutura social vigente. O autor afirma que o lazer é a
“cultura – compreendida no sentido mais amplo – vivenciada no tempo disponível. Não se busca, pelo menos fundamentalmente, outra recompensa além da satisfação provocada pela situação. A disponibilidade de tempo significa a possibilidade de opção pela atividade prática ou contemplativa” (p.31).
O conceito apresentado por Marcellino aponta a cultura como um elemento central na discussão do lazer. No entanto, o autor afirma que é preciso romper com a compreensão restrita que se tem de cultura, relacionado-a principalmente às artes e espetáculos e ao volume de conhecimento adquirido pelos sujeitos.
Marcellino (1997, p. 157-158) apresenta ainda 4 pontos que devem ser considerados para a caracterização do lazer:
1. Lazer é a “cultura vivenciada no ‘tempo disponível’ das obrigações profissionais, escolares, familiares e sociais, combinando os aspectos tempo e atitude”;
2. Lazer é “fenômeno gerado historicamente e do qual emergem valores questionadores da sociedade como um todo e sobre o qual são exercidas influências da estrutura social vigente”;
3. Lazer é “um tempo privilegiado para a vivência de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural”;
4. Lazer é “portador de um duplo aspecto educativo, veículo e objeto de educação”.
Na mesma direção, Gomes (2004, p. 125) entende o lazer como:
“Uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/ espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o trabalho produtivo”
Para Gomes (2004), o lazer se caracteriza por 4 elementos interligados – tempo, espaço-lugar, ações/atitude e manifestações culturais. Estes elementos são enraizados no lúdico, e, mesmo passíveis de pressão e interferência do contexto, bem como não adquirem caráter de obrigação e não são vistos como um conjunto de ocupações a serem cumpridas. A autora afirma ainda que esses 4 elementos expressam um exercício coletivamente construído, no qual os sujeitos se envolvem em função dos seus desejos.
Ainda sobre o conceito de lazer, Mascarenhas (2001, p. 92), fundamentado no pensamento Marxista, afirma que “o lazer se constitui como um fenômeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho, que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organização da cultura, perpassando por relações de hegemonia”. Marcarenhas (2006) afirma ainda que o lazer é a forma dominante de apropriação do tempo livre na sociedade contemporânea, considerado como expressão de determinações econômicas, políticas, sociais e culturais produzidas pelo modo de produção capitalista.
Para Mascarenhas (2000), somente em outra forma de sociedade, quando a associação autônoma dos trabalhadores puder se concretizar, é que os sujeitos poderão vivenciar um tempo verdadeiramente livre. O autor afirma ainda que, em outra sociedade, ainda que não seja possível visualizá-la em um momento próximo, o trabalho não deverá ser visualizado como um “fardo”, mas como uma possibilidade dotada de sentido, já que a distribuição igualitária e justa de seu produto social poderá ser assegurada com o fim da propriedade privada sobre os meios de produção. Neste outro projeto de sociedade, o tempo livre, e consequentemente o lazer, será destinado ao desenvolvimento físico e intelectual do homem com fim em si mesmo.
Melo e Alves Junior (2003) procuram definir as atividades de lazer pela conjunção de dois parâmetros: um mais objetivo, de caráter social (o tempo), e outro mais subjetivo, de caráter individual (o prazer). Os autores apresentam alguns indicadores que auxiliam no entendimento do conceito de lazer:
• As atividades de lazer são vivências culturais, em seu sentido mais amplo, que englobam os diferentes interesses humanos, as diversas linguagens e manifestações;
• As atividades de lazer podem ser realizadas no tempo livre das obrigações profissionais, familiares, domésticas, religiosas e das necessidades físicas. Isso não quer dizer que não há obrigações nos momentos de lazer, pois a diferença está no grau de obrigação. No lazer, pode-se optar com maior facilidade pelo o que se deseja fazer e em qualquer momento;
• Os sujeitos buscam as atividades de lazer tendo como referência o prazer que possibilitam, embora nem sempre isso ocorra e embora o prazer não deva ser compreendido como exclusividade das possibilidades de lazer.
ATIVIDADE SUGERIDA
Analise as concepções de lazer apresentadas no texto, buscando discutir as semelhanças e diferença no pensamento dos autores apresentados. Caso conheça algum outro autor que discuta o conceito de lazer, procure trazer as suas ideias para essa discussão.
Baseados nas concepções aqui apresentadas, entendemos o lazer de modo amplo e com características abrangentes, fruto da sociedade contemporânea. É um espaço privilegiado para vivências críticas e criativas de conteúdos culturais. É importante também avançar no seu entendimento apenas como descanso e divertimento, e pensar na possibilidade de proporcionar desenvolvimento pessoal e social, por meio das diferentes vivências.
Texto retirado dos:
CADERNOS INTERATIVOS – ELEMENTOS PARA O DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS, PROGRAMAS E PROJETOS INTERSETORIAIS, ENFATIZANDO A RELAÇÃO LAZER, ESCOLA E PROCESSO EDUCATIVO.
A IMPORTÂNCIA DA RECREAÇÃO E DO LAZER (4)
ISBN: 978-85-89196-36-9
Esse trabalho é resultado da parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); o Ministério do Esporte, por meio da Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte Recreativo e do Lazer (SNDEL); e o Ministério da Educação por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD).